Saturday, November 21, 2009

Matilde.

"Mal sabia ela que, de noite, eu espreitava da minha janela de fundos a hora de Matilde pisar a relva do jardim na ponta dos pés, entre as amendoeiras e a casa dos empregados. Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios se entreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto. Sobrevinha-me um desgosto, depois uns pensamentos paralelos, o cachorro do vizinho, a cerveja gelada na Frigidaire, o lago quente em minhas coxas, o cachorro, minhas calças e cuecas esporradas, a Frigidaire que meu pai mandou vir dos Estados Unidos, a lavadeira mostrando minhas roupas à mamãe, a cerveja na Frigidaire que papai não chegou a ver. Quando dava por mim, estava colado nos ladrilhos da parede, porque num deslize Matilde sempre me escapava. E a cada vez eu ia inspecionar salas, quartos, banheiros, porão e sotão, fingindo crer que ela teria fugido por engano para dentro de casa."

Leite Derramado - Chico Buarque.

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