Trecho de "Tieta do Agreste",
por Jorge Amado.
"Quando no dia seguinte a marinete de Jairo buzinou na curva próxima da cidade, Elisa, sentada à mesa antiga, quem sabe de valor, a servir de penteadeira, terminara de passar batom nos lábios e sorrio para a imagem reflectida no espelho barato pendurado na parede. Achou-se bonita. A negra, bravia cabeleira, agora cuidada, solta sobre os ombros, emoldura-lhe a face pálida, o langor dos olhos, a boca de lábios gulosos, acentuados pelo batom.
Linda de morrer, como diz, ao referir-se a estrelas de rádio, teve, cinema, o admirado locutor Mozart Cooper – pronuncia-se Cu…u…per - , voz de veludo nas ondas hertzianas a embalar os corações solitários. Coração solitário, linda de morrer.
Durante alguns minutos esqueceu-se de tudo quanto a afligia e ensaiou poses e trejeitos, imitados das cenas das fotonovelas: um muxoxo com os lábios, olhar apaixonado, sorriso tentador, a ponta da língua a surgir entre os lábios, vermelha e húmida. Beijar a quem? Num gesto cansado encolheu os ombros, os olhos cobriram-se de sombra. Volta a pensar na carta, busca tranquilizar-se: está chegando na mala do correio, trazida pela marinete, de hoje não passa. E se não chegar?
Na véspera, na mesa do almoço, Astério, comilão e apressado, a boca cheia, mastigando feijão e palavras repetia pergunta e lamúria:
- Porque tanta demora? Logo em Novembro, mês de pouca venda, quase nenhuma. Que diabo pode ter acontecido?
Elisa trancara os lábios, se lançasse a suspeita a queimar o peito o marido entraria em pânico. Esmorecido de natureza, incapaz de esforço e luta, o dia inteiro encostado ao balcão da loja à espera da minguada freguesia, animando-se apenas quando um dos parceiros de bilhar – Seixas, Osnar, Aminthas ou Fidélio – aparece para comentar apostas e jogadas; se Ascânio Trindade treinasse, Astério teria adversário pela frente. Osnar, desocupado, faz ponto na loja, o cigarro de palha pendurado no lábio. Infalível aos sábados, quando o movimento cresce por causa da feira. Após vender a farinha, a carne-de-sol, o feijão, as frutas, o cultivo das roças e o barro cozido em pequenos fornos rudimentares – moringas e quartinhas, cavalos e bois, jagunços e soldados, o padre cura e os noivos de mãos dadas, potes e panelas - , os sitiantes e roceiros enchem a loja a comprar fazendas, sapatos, calças e camisas, quinquilharias, vez por outra um rádio de pilha.
Na moita, equilibrado numa velha cadeira, Osnar espreita as caboclas novas, puxando conversa quando lhe parece valer a pena. Nos sábados, o moleque Sabino ganha cinco cruzeiros para ajudar, atendendo a maioria dos rudes fregueses – cinco cruzeiros e o que rouba no troco.
Se Eliza contasse a conversa com Perpétua, Astério seria capaz de ter um daqueles vexames repetidos a cada aperto maior de dinheiro, a cada problema com os fornecedores; suores frios, fraqueza nas pernas. Tontura, vómitos. Recolhe-se à cama, batendo o queixo, tiritando, a loja entregue a Sabino. Só Osnar consegue levantá-lo, arrastando-o para o bilhar, no Bar dos Açores, de seu Manuel Português.
No bilhar transforma-se, vira outro homem. Ri e graceja, arrota valentia, aposta sem medo, manda desafiar Ascânio, certo da vitória. Bom no taco. No taco do bilhar, somente no bilhar taco de ouro, surpreende-se Elisa a resmungar. Censuráveis resmungos, pensamentos ruins, surgiam assim de repente, perseguiam-na os malditos, cruz credo.
A face pensativa no espelho. Linda de morrer, ali perdida, a envelhecer naquelas ruas paradas, à espera da carta e do cheque. Não fossem o rádio de pilha e as revistas, que seria de Elisa?
Se revelasse a Astério o tema debatido com Perpétua, a probabilidade – para a irmã, a certeza – da morte de Tieta, ele vomitaria o feijão, o arroz, a carne, os pedaços de manga, ali mesmo em cima da mesa do almoço. Tirando o bilhar, um molengas, sem ânimo, sem ambição, sem conversa, sem alegria.
As raras prosas, as poucas risadas provinham ainda do bar, picantes histórias dos parceiros, de Seixas e Aminthas, raramente Fidélio, reservado de natureza e por cálculo, quase sempre Osnar, abastado, obsceno e mulherengo. As histórias de Osnar, entre as quais figura o notável caso da polaca, são de morrer de rir, em geral têm a ver com o descalibrado dos seus órgãos sexuais.
Estrovenga de jumento, afirma Astério, distanciando as mãos para indicar a medida espantosa: daqui para maior.
O cansado motor da electricidade deixa de trabalhar às nove da noite, marcando a hora de dormir, confirmada pelas badaladas do sino da Matriz. Astério conclui a partida, encosta o taco, recolhe ou paga as apostas, toma o caminho de casa. Vez por outra, se Elisa ainda não pegou no sono, Astério, ao despir-se, repete a mesma frase, prólogo do caso a narrar: Acontece cada uma!
Osnar ou Aminthas, Seixas ou Fidélio, fosse qualquer dos quatro o personagem, fosse outra figura da cidade, o enredo era quase sempre escabroso envolvendo mulher e cama – cama ou mato na beira do rio. Elisa ouve em silêncio, tensa, atrevendo-se de raro, a pedir detalhes, tão necessários no entanto à construção do imaginado mundo em que se trancara para subsistir, onde cada elemento importava; a grandeza de Antonieta, o postal de Buenos Aires, o perfume no envelope, as tramas de Seixas, os segredos de Fidélio, as patifarias de Aminthas, a anatomia de Osnar. Durante o dia, o rádio ligado sem parar, Elisa passa e remenda roupa, lava pratos, cozinha, lê e relê revistas, visita dona Carmosina no Correio, suporta, após o jantar, a lengalenga da vizinha, dona Lupicínia, cujo marido se mandara há mais de um lustro para as bandas do sul da Baía e não tinha previsão de regresso, vai ver não volta nunca.
Linda de morrer, só mesmo para morrer, para que outra coisa, qual? A boca ante o espelho abre-se ávida para o beijo. Qual beijo? Elisa levanta-se, ai quem lhe dera possuir um espelho onde pudesse se ver de corpo inteiro! Linda de morrer, no fino da moda.
Afinal, pergunta-se a encolher os ombros novamente, por que gasta esse tempão a pintar-se, em ajeitar a negra cabeleira, em fazer-se tão elegante no vestido restaurado, presente da Tieta como todos que possui, cada qual de melhor fazenda e de padrão mais moderno – usado mas pouco, quase novos.
Para que tanto apuro, tanto cuidado com a maquiagem, para que o decote a mostrar os ombros, o nascer dos seios?
Para atravessar as ruas desertas de passantes, perceber o peso do olhar do árabe Chalita, a bigodaça de sultão, a barba por fazer, eterno palito entre os dentes, dono do cinema Tupy e da sorveteria, velho e descuidado ou sentir sem ver a mirada matreira do moleque Sabino fixo no meneio das ancas da inacessível mulher do patrão, ouvir o pestilento assobio do Bafo-de-Bode, mendigo e bêbado? Tão podre e miserável, pode-se dar a todos os atrevimentos sem temer represálias. Esses três infelizes e acabou-se. Além disso, um boa-tarde dona; um chapéu levantado em muda saudação; a bênção do vigário e a incontida inveja das mulheres: Até parece que se vestiu para um baile, querida
Discreta e comedida, esposa honesta e virtuosa, ao passar Elisa recolhe no decote o cúpido olhar do levantino: ao vê-la certamente recorda tempos de antanho e corpos de mulheres; a cobiça do moleque acentua-lhe o requebro da bunda, assim de noite Sabino sonhará com ela. Não despreza sequer o assobio fétido do esmoler. Quanto à inveja das mulheres, tem igualmente merecimento e sabor, Modesta, Elisa responde: Vestido enviado por minha irmã Tieta, é dela o gosto e a elegância, hei-de botar fora? Louvam então em coro a ausente Antonieta, irmã generosa, filha exemplar, a infalível ajuda mensal, os presentes régios – régios, sim senhora, cada vestido desses vale um dinheirão!
Elisa recomenda à pequena Araci atenção na casa, fecha a porta da rua, dirige-se para o correio. Atravessará a feira, passará pelo árabe, pelo moleque, pelo maluco, pelas comadres no adro da Igreja. O rosto sério, como cumpre a uma senhora casada. O coração apertado, lá dentro a certeza de que a carta não chegou.
Wednesday, November 4, 2009
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